quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Aprendiz da seca...





A seca,tudo transforma.  De tudo exige um novo ritmo...
Surpreendente constatar que Pe. Fernão Cardim relatava, nos idos tempos jesuíticos,a presença dela no nordeste dessas paragens. Pela ótica distanciada de uma “literatura de viagem”, o missionário catequista dedicou-a pouco mais de um parágrafo do seu Tratado da Terra e Gente do Brasil. Em rápidas linhas, descreve o nomadismo dos nativos dessa geografia, no caso, aqueles a quem rapidamente rotulou de “índios”. Para eles, os índios, a conhecida escassez de água evocava o movimento, obrigava-os a buscarem estratégias, organizarem-se, unirem-sede alguma maneira para solidificar a certeza e perenidade ante agrandiosidade do temporário.
A literatura em muito nos deu notícia deste “fenômeno” e a julgar pela quantidade de escritos encabeçados pelos cearenses, depois pelosparaibanos, pernambucanos, baianos, alagoanos enfim, ela, a seca, é nossa velha companheira, parente próxima que teima em nos visitar sem cotejar prévio convite.
 Capturada pela arte, protagonizou OsSertões(1902), A Bagaceira (1928), O Quinze (1930), Vidas Secas (1938), Seara Vermelha (1946), Cangaceiros... Muitos e muitas narrativas que dedilharam, num rosário interminável de descrições, os flagelos trazidos na bagagem da incômoda senhora para seremdistribuídos, a contragosto, aos seus insatisfeitos e desavisados anfitriões”.Subgrupo da vertente regionalista, fomentada pelo Manifesto de 1926, é uma “ literatura da seca” , segundo Tristão de Athayde,capaz não só de refratar, mas também de produzir um imaginário coletivo, apto em associá-laà aridez, à infertilidade disseminada em seu mais alto grau. Esse arquétipo da seca,  muitas vezes obscurece seu poder: a mobilidadecriativa, a capacidade de regeneração e de fortalecimento a quem dela recebe a enfadonhavisita. 
Lidos tantos textos, sorvida tanta poesia, penso na bagagem lírica, no conteúdo latente a esse “acontecimento” de regularidade quase matemática e na sua interferência no cotidiano local...
Nunca vivi a seca tão de perto, mas posso senti-la mestra, professora, posto que as suas lições ecoem aos meus ouvidos, tornem-se visíveis aos meus olhos, palpáveis ao toque de minhas mãos, sorrateira ao meu olfatoe, sobretudo, perceptíveis ao meu paladar.
Da seca, aprendi o silêncio das árvores órfãos de ornamentos e orquestras; o sussurro do vento soltando a terra devagarinho,numa maldadecarnavalesca depó, feito confete, sobre os telhados e biqueiras boquiabertosde espanto.
Da seca, aprendi o cinza da montanha, a nudez das pedras mortas e “cadavericamente” mumificadas. Aprendi a tristeza da grama desmaiada de fome, do jardim em repouso e sem festa, a limpeza triunfante de um céu, cuja incandescente assepsia nos faz pensar:“não há um pingo de branco a sujar o imaculado do azul”, não há possibilidade...
Da seca, aprendi a dureza da terra, a tatuagem da ruga esculpida na paciência do sol e do tempo, gêmeos de “morte e de vida, severinas”. Aprendio pesado da água, a rispidez e a economia do toque, o valor do hidratante... Ah! O hidratante! O “hidra”/água feito creme, corrompida de sua identidade primeva.
Com ela,grande professora, aprendi o gostoamargo das coisas mais simples carentes de água. O murchar das hortaliças, a tristeza da magra feira, o soluço decepcionado de tudo que é irrigado pelas mãos econômicas do homem. Percebi, "(...) Uma ressurreição de cemitérios antigos - esqueletos redivivos, com o aspecto e o fedor das covas podres. (...)", além do cheiro triunfante da queimada fabricada pela ignorância e cozida às pressas na fornalha do masculino fogo.
Da seca, em sua gramática imutável, compreendi as regras. A construção intercalada que tem o poder de modificar grandes períodos, um vocabulário novo que faz do “pipas” eternos voadores em busca de água para mitigar a sede de quem tem.
A matemática da seca bem ensina o preço da vida, a exatidão da dívida. Ensina a subtração dos bens, a soma dos insucessos, a multiplicação da esperança, a divisão de tudo em duas realidades: com água, sem água. Ensina ainda a economia dos contatos, a geometria das distâncias percorridas e desnuda as formas geométricas dos açudes e barragens: círculos e esquadros grávidos de vazio.
A biologia da seca nos ajuda a perceber a alegria ensandecida dos pardais, a insistênciarotineira dos lagartos, a audácia dos insetos teimosos que de nós se aproximam em diálogo repleto de incomodada intermitência.Éela, impávida matrona, que desestabiliza os gêneros fazendo das Luzias homens, das mulheres, macho... Dos homens, cabeleiras. Tudo desorganiza em harmoniosa celebração do impulso.
 A filosofia da seca, boa professora,desvela a cada um a certeza de que o saber não equivale à ação, que o conhecimento não garante melhoria, que as injustiças se perpetuam pela tirania dos aproveitadores, que a ética e a moral ficam obscurecidas ante a perplexidade da morte desposada pela fome. Mas ensina a solidariedade de comungardas mesmas sensações...
A liturgia da seca ministra a crença nas adivinhas, a espera no numinoso, o associar do tempo aos santos e aos santos, a chave das comportas aquíferas do infinito. Esse relicário das secas nos diz da nossa congênita pequenez.
Mais que tudo, a grande mestra nos dizda secura humana, do semiárido dos sentimentos, da carência de unidade na construção de uma dinâmica capaz de, como os “índios”, estabelecer um movimento produtivo de convivência com a seca “de água” rumo ao combate à seca de valores, pior crise.
Bom seria aprendera conviver com ela sugando cada gota de seus ensinamentos e transformando suas lições em solidariedade, pois durante a chegada dessa dama exigente somos convocados a nos doar mais e mais em prol do outro, aprendemos a verdadeira noção da sustentabilidade somenteadquiridaquando serespeitao outro, quando se descobre no outro o nosso próximo.
A seca, por fim, tem o dom de me conduzirao“alumbramento” da personagem Gabriela, criada por Jorge Amado.A simples retirante coberta pelo pó da jornada migratória que,ao se deparar com as fontes cristalinas de Ilhéus, deixa de lado toda e qualquer convenção e se permite banhar e desfrutar de cada gota libidinosa das carícias aquosas.
Oculta pelacrosta, pelo agarrar da poeira impregnada nos poros e pelos, uma mulher tocada pela leveza do nomadismo, porta-voz da mudança, avessa ao sedentarismo, “divisora de águas”... Repleta de possíveis.
Penso seristo o que a seca pode nos ensinar e nos trazer de melhor: essa certeza de que, por baixode tantos sentimentos mesquinhos que contaminam e nos sufocam, por baixo de uma pele coberta poruma espessapoeira repleta de egoísmos e preconceitos, subjaz uma centelha do divino pronta a desabrochar em beleza... Em completa e inerente suavidade.

Patrícia Germano – 04.02.2013
Às 17h11 - Aroeiras
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